Eu escrevo pensando sempre no país, não consigo me desligar. É nele que vivo. É minha seiva, não é? O resto não, o resto você adquire por meio da sua formação, das leituras, da forma como você processa as informações.
Diminuiu a centelha de energia que mobiliza as pessoas. É cada um por si. Isso é triste. Todo mundo almeja a felicidade, então por que não almejá-la por e para todos? Está tudo pequenininho, mesquinho.
(Guarnieri, à Folha de S. Paulo, 2001)
Meus caros, eu estava escrevendo este texto quando o querido Gianfrancesco Guarnieri faleceu, em 22 de julho de 2006. Segui em frente, não obstante, inclusive contando com o apoio irrestrito e inestimável da família do autor, e o publiquei exatamente um mês depois, no dia 22 de agosto. Conto aqui modestamente a história da parceria entre Guarna e Marcus Faustini, que resultou em uma exitosa remontagem de Eles não usam Black-Tie e no último texto escrito por Guarnieri, A Luta Secreta de Maria da Encarnação.
Nos quatro anos que separam a publicação original, no orkut, desta aqui, determinadas fontes utilizadas, na época, por mim (como o JB, por exemplo), deixaram de existir ou enxugaram seus arquivos, razão pela qual se encontrarão, com desagradável freqüência comentários como “cujo link não existe mais” ou “cujo link infelizmente não consegui mais encontrar”. Paradoxalmente, outras ferramentas surgiram e pude, na mesma medida, enriquecer o texto com outras informações e detalhes importantes, especialmente naquilo que vem antes, e que foi tão mal-explorado, até hoje, na internet.
No fim do texto vocês encontrarão um link para download gratuito de uma gravação com trechos do espetáculo A Luta Secreta de Maria da Encarnação, material inédito e de grande valor histórico. Sem a ajuda abnegada e generosa de Flávio Guarnieri, ator da peça, e de Daniel Dias da Silva, diretor-assistente, não teria sido possível postar aqui este trabalho sobre a Luta Secreta, que tanto ajudará as gerações mais novas que se debruçarem sobre este projeto. E meu melhor agradecimento vai também para Evill Rebouças e todos aqueles que gentilmente cederam depoimentos exclusivos sobre a Luta.
Divirtam-se, e matem um pouco a saudade de nosso Guarnieri. Bernardo
Em fevereiro de 1995 estreou no Teatro Paramount de São Paulo (atual Teatro Abril) o espetáculo A Canastra de Macário, escrito por Guarnieri e dirigido por José de Anchieta. Ao contrário de 99% de seus textos, Guarna deixou o engajamento de lado em Macário. Segundo ele mesmo declarou à Folha, no dia 2: "Não é uma crítica, não tem um dedo em riste apontando para nada. Escrever essa peça foi uma grande diversão. Pela primeira vez, escrevi um personagem diretamente para mim, com todas as situações que eu sempre gostei de representar no palco". Além disso, contava nessa peça com a satisfação de contracenar, entre outros, com seus filhos Mariana e Cacau. Diz a Folha:
A peça foi escrita entre outubro e novembro do ano passado. Havia inicialmente a idéia de um espetáculo com Egberto Gismonti. Não deu certo. Depois, Guarnieri pensou em uma história de "serial killer" — também abandonada. Finalmente, surgiu o Macário. A peça foi escrita pensando no grupo teatral que acompanha Guarnieri — o filho Cacau (Zapata) e a filha Mariana (Zezinha), os atores Renata Carneiro (Ismênia) e Marcelo Góes (Orestes). Faltava apenas o violeiro. O diretor José de Anchieta chamou o violeiro Adauto Santos para o papel — conhecido como autor da música "Triste Berrante", incluída na trilha sonora da novela "Pantanal", da Manchete.
Ainda segundo a Folha, “o personagem dos sonhos de Guarnieri é o Macário do título, um velho ator mambembe enganado pelo empresário Orestes. Ele contrata Macário para representar, em uma peça teatral, o personagem de um milagreiro. Só que não existe peça nenhuma: Orestes vai à cidade de Cova D'Oeste (ex-Fura Tripa e Tiro Certo) e diz que Macário é mesmo um santo. Com isso, consegue muitas doações para supostas obras de caridade. O ator só percebe o golpe quando, dias depois, bêbado, chega à Cova D'Oeste e é recebido como um milagreiro de verdade. Orestes foge com o dinheiro e deixa Macário e sua canastra entregues ao ânimo nada amistoso dos moradores”. (2/2/1995)
Guarnieri como Eliseo, em A Próxima Vítima
Juntamente ao trabalho teatral, Guarnieri gravava sua participação como Eliseo na nova novela de Sílvio de Abreu para o horário das 8, A Próxima Vítima. Tudo parecia bem. Guarna era um sexagenário plenamente ativo e ocupado com diversos trabalhos. Só que no início de março, pouco menos de uma semana após o primeiro capítulo de A Próxima Vítima ter sido transmitido, ele teve um aneurisma — dilatação nas paredes de veias ou artérias que pode se romper e provocar uma hemorragia interna — na aorta. Foi obrigado a abandonar o espetáculo e as gravações da novela temporariamente e no dia 21 de março foi submetido a uma cirurgia relativamente simples para reverter o problema. Imaginava-se, então, que em pouco menos de um mês Guarna estaria de volta aos dois trabalhos. Mas não foi bem assim. As conseqüências iniciais do aneurisma e da cirurgia corretiva o deixaram de molho por quase quatro meses. Um de seus rins foi irremediavelmente comprometido. Só em julho voltou à temporada de Macário e às gravações da novela das 8.
Aparentemente recuperado, Guarnieri voltou ao ritmo acelerado de atividades que sempre apreciou. Mas não no teatro. Como nunca foi milionário e não era homem de dizer "não" a trabalho, nesse mesmo 95 fez uma ponta no filme O Quatrilho, de Fábio Barreto, e entre 96 e 97 trabalhou nas extremamente esquecíveis novelas Razão de Viver (SBT) e Canoa do Bagre (Record).
Em 1998 voltou aos palcos na peça Anjo na Contramão, que escreveu em parceria com o filho Cacau. Dirigida por Roberto Lage e trazendo elenco Guarnieri, Leonardo Franco, Mariana Guarnieri, Roberto Arduim, Lara Córdula, Lui Strassburger, Paulo Vasconcelos, Casé Campos e os músicos Paulo Petrella e Kleber Caetano, a peça estreou em março no Teatro São Luís, em São Paulo (atual Espaço Promon). Segundo a Folha:
No auge da carreira, aos 35 anos, o cantor popular Victor Vera (Leonardo Franco) atravessa uma crise existencial que vai transformar sua vida. Insatisfeito com as canções, dividido pelo amor de duas mulheres e sacudido pela notícia de que o pai (Guarnieri) está morrendo no hospital, Victor Vera é nocauteado pelas emoções. Na noite de estréia ele bebe, toma tranqüilizantes, passa mal em pleno palco e entra em estado alterado de consciência. "A partir desse mergulho, entre vida e morte, o personagem passa a vida a limpo e, paradoxalmente, depara com lucidez no caos irreal em que está metido", explica Guarnieri. (19/3/98)
Guarnieri tinha uma única — e magnífica — cena no espetáculo e eu só lamento profundamente que o próprio Cacau não tenha feito o papel de Victor (filho do personagem de Guarnieri), porque embora Leonardo Franco fosse muito talentoso em comerciais, faltou-lhe estofo dramático para encarar uma cena com um gênio da interpretação como Guarnieri. O mesmo embate entre pai e filho na vida real — conquanto a peça não tenha qualquer elemento auto-biográfico — provavelmente teria soado mais verdadeiro e portanto mais emocionante. Como disse a mesma Folha, dois meses depois, em plena temporada, “o destaque inevitável é o próprio Gianfrancesco Guarnieri, um perfeito Pai, benevolente, mas firme no que quer. É um grande ator que está ali. Ele dá alguma leveza à peça e facilita muito, ao espectador, atravessar as duas horas de Anjo na Contramão". (8/5/98)
No mês seguinte Guarnieri foi para a Bandeirantes, onde trabalhou com Nilton Travesso em Serras Azuis e imediatamente em seguida com Del Rangel em mais um dos remakes de Meu pé de laranja lima. Com direção do mesmo Del filmou em 1998 aquele que viria a ser seu último longa-metragem, Contos de Lygia, com Natália Timberg, baseado em contos de Lygia Fagundes Telles.
As pontas medíocres de Guarnieri na novela Terra Nostra ou no seriado Você Decide, ambos na Globo, não tiveram o menor peso no ano de 1999, que acabou marcado pelo encontro do autor com Marcus Vinícius Faustini. O diretor, de apenas 28 anos e nascido no subúrbio carioca de Santa Cruz, vinha de uma adaptação teatral exitosa do livro Dom Casmurro de Machado de Assis, intitulada Capitu, e queria pedir a Guarnieri autorização para montar Eles não usam Black-Tie. O velho autor logo se impressionou com o garoto, conforme declarou a Alberto Guzik, em reportagem do Estadão: "Em nossa primeira conversa, quando ele me explicou por que queria montar Black-Tie, pensei: Esse cara é diferente, o discurso dele não é comum. E fiquei felizinho. Havia encontrado um excelente interlocutor".
Marcus Faustini
Autorização concedida, Faustini escalou o extraordinário Sebastião Vasconcelos para o papel de Otávio, que foi de Eugênio Kusnet na montagem original do Arena, em 58, e do próprio Guarna no filme de Leon Hirzsman em 81. Romana, a mãe sofredora criada brilhantemente por Lélia Abramo e imortalizada por Fernandona no filme de Hirzsman coube agora à competente Ana Lúcia Torre. Para interpretar Tião, o filho fura-greve, e sua noiva Maria, papéis criados por Guarnieri e Miriam Mehler no Arena e defendidos por Carlos Ricelli e Bete Mendes no cinema, foram escolhidos os globais Eduardo Moscovis e Teresa Seiblitz. O espetáculo estreou em março de 2000 no Teatro do SESI, no Rio e teve uma acolhida calorosa de público e crítica. Aliás, é um prazer particular, para todos nós, constatar o quanto a crítica louvou a atualidade do texto de Guarnieri, atestado inequívoco de sua grandeza como dramaturgo. Eis o que disse Mauro Ferreira, na Istoé:
Sebastião Vasconcelos e Ana Lúcia Torre
O novato diretor Marcus Vinícius Faustini — revelado no ano passado em "Capitu" — saiu-se bem na empreitada. Não quis ser mais importante do que o texto de Guarnieri e conta com atuações primorosas de Sebastião Vasconcelos (Otávio) e Ana Lúcia Torre (Romana). A montagem de Faustini não emociona como o filme, mas seduz sobretudo pela ótica original com que o mote da trama (uma greve de operários) é apresentado. (...) Acima de tudo está o texto de Guarnieri, um clássico da dramaturgia que merece ser sempre remontado.
Com aval de crítica e público — e também do autor, porque Guarna assistiu a peça no Rio e revelou ter ficado "emocionado" com o resultado — a peça viajou em turnê vitoriosa por todo Brasil. São Paulo só veria a nova versão de Black-Tie no ano seguinte.
Mário Covas e João Ubaldo Ribeiro
Meses antes, Guarnieri tinha sido convidado por seu amigo Mário Covas para escrever um texto comemorativo dos 500 anos do descobrimento. Como o Brasil até hoje não foi capaz de criar um evento decente para efemérides desse tipo, Guarna ficou meio desconfiado e sem muita vontade de participar, mas considerando a importância da data, informou que escreveria um texto sobre "as lutas do povo brasileiro". Recebeu o ok e preparou uma sinopse, utilizando como fonte de inspiração o livro de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro. Só que a coisa, pra variar, naufragou antes de começar. Guarna rememoraria o fato com bom-humor, na mesma entrevista a Alberto Guzik, do Estadão, no ano seguinte : "Por sorte, a Petrobrás, consultada sobre um possível patrocínio, informou que a verba, solicitada para 2000, poderia ser concedida, mas em 2001. Com isso, fiquei liberado dessa coisa do Descobrimento". Guarna livrou-se do compromisso com a efeméride, mas não descartou a idéia de escrever um texto sobre as lutas do povo brasileiro, focalizando especificamente a mulher brasileira.
Marcus Faustini "Em função da montagem do Black-Tie", disse Guarna a Sérgio Roveri, "eu conversei muito com o Faustini, eu aqui em São Paulo e ele no Rio. A partir destas conversas eu comecei a escrever, pensando nele como diretor, a peça A Luta Secreta de Maria da Encarnação". (Um Grito Solto no Ar. São Paulo, Imprensa Oficial, 2004) O projeto foi sendo levado em banho-maria, enquanto o autor garantia a refeição dele e de sua família em mais uma novela nada memorável, Vidas Cruzadas, que entrou no ar na Record, em novembro de 2000. O Black-Tie de Faustini seguia sua turnê nacional e preparava-se para aportar em São Paulo.
Em 31 de março de 2001, exatamente um ano após sua estréia carioca (achei até meio estranha essa coincidência absoluta de datas), a remontagem chegou ao Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Em reportagem do Jornal do Brasil [cujo link não existe mais] que reuniu o jovem diretor e Guarna em sua casa na Cantareira, Faustini comunicou a Guarnieri que algumas mudanças tiveram de ser feitas na montagem paulista. Guarna brincou: "Tudo bem, acho mesmo que deveria atualizar, colocando bastante gelo seco no palco, gente nua e fazendo malabarismo". Mas Faustini na verdade se referia às mudanças de elenco, que incluíam a entrada de Vanessa Gerbelli no lugar de Teresa Seiblitz (grávida), Priscila Assum no lugar de Luciana Rigueira e Vinícius de Oliveira – o menino Josué do filme Central do Brasil – no lugar de Jorge Neves, muito elogiado na montagem carioca.
O convívio com Faustini reacendera a chama do dramaturgo, que bruxuleava no coração de Guarnieri. A empatia entre os dois foi tamanha que o autor começou a se dedicar integralmente ao projeto iniciado por ocasião da comemoração dos 500. Primeiramente com os títulos provisórios de História das lutas do povo brasileiro, A Luta do Povo Brasileiro e A Mãe, a nova peça de Guarna começou a tomar forma: "Vi que o ideal era escrever sobre a luta. Mais adiante enxerguei que queria falar sobre a figura da mulher e acho que a representação da mãe sintetiza todas as lutas sociais", disse Guarna ao JB pouco antes da estréia paulista do Black-Tie. À Folha Guarna falou com mais detalhes, deixando claro que o mote da peça seria a combatividade do brasileiro através da história de lutas de uma mulher:
Apesar de todos os problemas, o povo brasileiro, no fundo, luta pela sobrevivência de forma objetiva. Eu quero contar essa resistência por meio da própria história do país, privilegiando o ponto de vista da mulher, essa mulher que é mãe, que é companheira, que encara. Quero falar de uma mulher que viveu muito, que tem, digamos, a idade do país. (...) Ao mesmo tempo em que conversa com os escravos do período da abolição, por exemplo, ela enxerga o abatimento dos dias atuais e tem uma vontade danada de alertar as pessoas e dizer: "Espera aí, não podemos ter essa resignação toda a ponto de a gente querer assassinar o que é a memória, o que é história". (31/3/2001)
A empolgação foi tanta com o novo projeto que Guarna entrou em contato com seu grande parceiro de obras-primas, Edu Lobo, e o convidou para assinar a trilha, como nos bons tempos de Zumbi e Marta Saré. Só que infelizmente Edu já tinha se comprometido com outro velho amigo (e gênio), Chico Buarque, na composição da peça Cambaio, então teve que declinar o convite. A responsabilidade então recaiu sobre o vizinho de Guarnieri na Serra, o grande compositor Renato Teixeira, que não se incomodou em ser a segunda opção e aceitou com prazer o compromisso.
Renato Teixeira e Guarnieri Black-Tie provou ser um sucesso também em sua temporada paulista. Mais uma vez, a crítica foi pródiga não apenas em elogiar o espetáculo, mas em ressaltar o imenso valor do texto encenado 43 anos antes no Teatro de Arena. Kil Abreu, crítica da Folha, falou sobre isso:
Sebastião Vasconcelos sustenta o velho Otávio com a firmeza do militante mais convicto. Ana Lúcia Torre, em desempenho marcante e longe dos estereótipos, afirma a dura e conciliadora existência da favelada Romana. Já Eduardo Moscovis fica preso a um desenho esquemático de Tião e ganha força na contracenação com os atores mais experientes. Quanto à atualidade da peça, seria ingênuo supor que em tempos de acentuada desmobilização dos movimentos reivindicatórios é possível crer sem certo esforço em personagens que colocam o bem coletivo na qualidade de um problema, quando a própria noção do que seja o interesse de classe está diluída na doutrina da iniciativa individual enquanto instrumento inegociável de progresso. Mas isso, naturalmente, não diz tudo. "Black-Tie" preserva o frescor das histórias necessárias ao seu tempo. (15/4/2001)
Tempos depois de terminada a temporada de Eles não usam Black-Tie, Ana Lúcia Torre diria, em entrevista ao site Teatro Chik, que Romana foi um dos maiores personagens de sua carreira: "Uma delas foi a Romana de Eles Não Usam Black Tie, aquela mulher é tudo... Quem estreou no teatro foi a Lélia Abramo. No cinema foi a Fernanda... Eu achava muito bom poder fazer esse papel. Por isso tentava esquecer que elas já haviam feito, pois a responsabilidade era muito grande.(ri) E foi muito bom".
Inteiramente envolvido com seu novo espetáculo, Guarnieri trabalhava como um doido. Ao contrário de outras peças suas, escritas em dois, três dias, e às vezes em uma única noite, esta levou quatro meses de isolamento na Cantareira, para ficar pronta. O título definitivo da peça seria A Luta Secreta de Maria da Encarnação e contaria a vida de uma mulher de 80 anos que vai rememorando acontecimentos marcantes (e trágicos) de sua existência dentro do contexto histórico brasileiro, como seu estupro aos 15 anos, o marido assassinado, o suicídio de Getúlio, a revolução de 64, o AI-5, o acanalhado segundo marido, delator e reacionário, e a constante busca por suas filhas. A trama se desenrola por meio de flashbacks e tudo é permeado pela música de Renato.
Sem perceber, tamanha era a felicidade em compor seu novo trabalho, Guarnieri descuidou completamente de sua saúde. Estafado, anêmico e com seu único rim saudável dando sinais de sobrecarga, ele terminou a peça em julho. A família observava com renovada admiração o esforço e a paixão de Guarna em concluir o trabalho. Concluiu, mas infelizmente não teve forças para compor as letras das músicas do espetáculo, que acabaram sendo escritas pelo próprio Renato Teixeira.
Guarnieri entrou em repouso e em cinco de setembro deu uma entrevista à Marici Salomão, do Estadão. A reportagem fez referências ao estado de saúde do autor e comentou que ele estava "com voz baixa, convalescendo de um problema de saúde". Guarna falou com um certo pessimismo, talvez reflexo do stress profundo em que se encontrava: "Eu queria soltar os cachorros nesta nova peça. (...) A comunicação hoje é muito difícil. O que as pessoas estão querendo, será que apenas morrer de rir? Mas parei com esse negócio de achar que está tudo ruim e penso que se dez pessoas se interessarem por aquilo que você faz, já vale". Também falou muito da Luta Secreta, já em ensaios desde julho:
Desde o início, queria um personagem feminino, não feminista. Cheguei a pensar num coro que simbolizasse a mulher. Mas percebi que não dá para criar a mulher no geral. Era preciso falar da situação terrível da mulher no Brasil. Não é como em alguns países da Ásia, mas aqui tem sim uma coisa terrível, o peso da cultura machista excluindo a mulher. Um dia me bateu um nome: Maria da Encarnação. E a palavra encarnação significava a possibilidade de concretizar no palco a história de uma única mulher, que simbolizasse todas.
Arrematou com as pérolas habituais de sabedoria que nunca economizou: "Ao artista cabe uma função muita determinada: É sempre desvendar realidades existentes, com o objetivo de suscitar uma série de efeitos e novos pensamentos nas pessoas".
A Luta Secreta de Maria da Encarnação seria um épico musical. Guarna chamou a excelente veterana Suely Franco para dar vida à Maria da Encarnação. Outros nomes escolhidos foram os de Chico Martins, Ênio Gonçalves, Ewerton de Castro, Vanessa Gerbelli (que deixava de ser a Maria de Black-Tie para ser a Maria da Encarnação jovem), Carmo Dalla Vecchia, Flávio e Mariana Guarnieri e um elenco que incluía nada menos do que 32 pessoas. A cenografia e os figurinos ficaram a cargo do competente J.C. Serroni; a coreografia era de Sandro Borelli; a direção musical das canções de Renato Teixeira foi para Nathan Marques. Regendo uma orquestra de 30 elementos da Orquestra Jovem Tom Jobim do Estado de São Paulo estaria o Maestro Roberto Sion.
Elenco da Luta Secreta: Suely Franco sentada, à frente. Em pé, da esq. para dir., Chico Martins, Flávio Guarnieri, Ênio Gonçalves, Mariana Guarnieri, Vanessa Gerbelli (ao fundo), Ewerton de Castro, Carmo Della Vecchia e Cláudia Mello
Suely Franco
Suely, com 44 anos de carreira, falou ao Estadão [cujo link infelizmente não consegui mais encontrar] de seu prazer em trabalhar com Guarnieri pela primeira vez: "É meu primeiro Guarnieri e a primeira vez que trabalho num texto dessa natureza. (...) Fiquei muito emocionada com o convite e estou aprendendo muito". Falou também de Maria, seu personagem, protagonista do espetáculo: "Ela me remete muito à persistência das mulheres que perderam seus filhos durante a ditadura militar, como as 'mães de maio', na Argentina, por exemplo. Maria é uma guerreira, dotada de uma força interior extraordinária. Apesar de todas as dificuldades, ela reverte o seu analfabetismo, torna-se professora para ajudar as outras pessoas, funda uma associação de mulheres beneméritas. Mas no final, ela já está um pouco cansada das pessoas".
O repouso não foi nem de longe suficiente para curar o problema que vinha minando a saúde de Guarnieri desde o aneurisma na aorta. Enquanto a imprensa ia criando expectativa cada vez maior em cima do novo espetáculo, a saúde de Guarna piorava e na primeira quinzena de setembro (que coincidiu com o ataque às torres gêmeas de NY) ele se sentiu mal e foi imediatamente hospitalizado. Os médicos constataram a perda definitiva de suas funções renais e em outubro — mês que antecedeu a estréia da Luta Secreta — Guarnieri começou a dolorosa e modorrenta rotina de duas sessões de hemodiálise por semana.
Em sentido horário: Nathan Marques, J.C. Serroni, Renato Teixeira e o maestro Roberto Sion
Embora ainda muito abalado pela mudança drástica que sua vida tomaria dali por diante, com a hemodiálise, Guarnieri estava feliz e aguardava ansioso a estréia. Uma superprodução de 1 milhão e meio de dólares e mais de 80 pessoas envolvidas entre elenco e parte técnica. O projeto ainda previa o lançamento de um livro e um cd do espetáculo. O autor não poupava elogios a Marco Faustini: "Eu andava triste com teatro, e recebi um sopro de vida. Escrevi a peça em intensa comunicação com ele, mandava-lhe cenas para ler, ele comentava. Para mim, isso foi ótimo. Estou aprendendo com ele, temos uma interação rara nos dias de hoje, algo que recorda os tempos do Arena. Faustini é uma recriação do espírito do Arena. Só não foi do grupo porque não era nascido. (...) E eu me identifico com o teatro que ele faz. É de equipe, tem as bases do teatro de grupo, no qual eu acredito", disse Guarna, em novembro, a Alberto Guzik.
Suely, Ewerton de Castro e Vanessa Gerbelli
A estréia se aproximava. A Istoé falou sobre os ensaios gerais ocorridos na primeira semana de novembro:
Na semana passada, durante o primeiro ensaio corrido com a orquestra, que executará a trilha de Teixeira ao vivo, os olhos de Guarnieri brilhavam. Sua presença assumia um caráter quase solene. Enfraquecido pelas sessões diárias de hemodiálise, Guarnieri sai pouco de casa. Mas, apesar do incômodo das seqüelas de um aneurisma na aorta, ele se mostrava radiante com o criativo cenário caótico executado pelo premiado J.C. Serroni. Para a cena de abertura, por exemplo, o cenógrafo inventou um lixão entre as ruínas de um viaduto desmoronado.
"Um lixão" não traduz a quantidade de material utilizado por Serroni, que usou dez caminhões de lixo reciclável: 250 pneus, duas caçambas, a carcaça de um carro detonado, dezenas de garrafas plásticas, e assim por diante. Dia 12 de novembro a peça estreou para convidados e na sexta, dia 16, para o público, no Teatro Sérgio Cardoso. Em texto exclusivo para o programa da peça, Fernanda Montenegro falou de sua admiração pelo velho amigo, com quem trabalhou tantas vezes ao longo dos anos:
Guarnieri e Fernanda, em cena célebre da novela "Cambalacho" Como ator, Guarnieri possui uma empatia arrasadora, que envolve a todos que contracenam com ele. E também o espectador, que acaba envolvido - tão forte, consciente e emocional é sua atuação. Como dramaturgo, nunca é didático ou doutrinário. O seu texto vem imantado por uma humanidade muito grande. Como artista, possui uma dualidade rara - é a um só tempo sonhador e realista. É capaz de explodir em poética, sem perder a consciência da realidade social e política. (...) Estou feliz com a volta de Guarnieri aos palcos. Como diz o velho Shakespeare, o importante é ser fiel a si mesmo. E Guarnieri nunca deixou de ser, jamais perdeu o seu norte. Um artista consciente e com um deslavado amor pelas coisas com as quais se identifica. Um amigo fraterno e amorosíssimo. Um companheiro com quem me identifico antes, agora e sempre.
Vanessa Gerbelli e Suely Franco
A recepção da crítica em geral foi positiva, embora houvesse uma certa noção de que havia algo de caótico não só no cenário, mas no espetáculo, como um todo. Dias antes Guarna dissera à Folha que a super-produção não esmagaria o que a peça procurava transmitir. Macksen Luiz, do JB [cujo link não existe mais], depois de tecer considerações favoráveis ao texto, tocou nesse assunto:
A montagem de Marcus Vinícius Faustini é determinada pelas várias instâncias de linguagem (musical, farsa, melodrama, comédia), procurando construir cada cena como um fragmento narrativo. Dessa maneira, serve bastante bem ao texto, igualmente fracionado em seus tempos narrativos e repleto de trilhas desviantes. O da encenação se reflete na elaboração de uma estrutura cênica que ambiente a proposta musical, e suas decorrências, como coreografia e canto. As manifestações populares — bumba-meu-boi e shows pobres — são incorporadas à cena como registros, como acontece também na variedade estilística das interpretações, que oscilam entre o tradicional, como figura de mamulengo, e atuações mais identificadas com uma visão criticamente contemporânea.
Mais à frente Macksen dá algumas indicações interessantes sobre o que vinha sendo realizado:
Depois de um longo e frágil quadro inicial, que se passa num lixão, o espetáculo se mantém em inconstante balanço, que alterna cenas que atingem dinâmica própria e agilidade e outras, derivativas e sobrecarregadas de intenções e de adereços, confundindo ritmo com agitação. (...) O cenário de J.C.Serroni soluciona as diversas necessidades da ação, num desenho que esboça bem várias idéias, mas que ficam nas sugestões. Os muitos elementos que compõem uma estrutura, em si bastante engenhosa, acabam por atirar em múltiplas direções sem encontrar ambientação e atmosfera totalizantes. A trilha de Renato Teixeira tem uma sonoridade adequada e letras um tanto convencionais. Do elenco de 38 atores, Suely Franco se destaca como a Maria da Encarnação octogenária, não só pelas possibilidades oferecidas pelo papel, como pela garra com que a atriz defende a personagem. Vanessa Gerbelli tem uma interpretação sanguínea e com um frescor de atualidade. Ewerton de Castro dá um traço de humor ao seu personagem, provocando efeito aparentemente contrário ao pretendido pelo autor. Cláudia Mello, Ênio Gonçalves e Chico Martins ficam prejudicados por suas personagens esquemáticas, enquanto Carmo Dalla Vecchia permanece num plano interpretativo apagado.
Às vezes me pergunto o que teria sido esse espetáculo nas mãos de um gênio como Flávio Rangel, amigo íntimo de Guarna e diretor exímio e inigualável de espetáculos de grande porte.
A Luta Secreta de Maria da Encarnação, nascida sob ótimos auspícios e com as melhores intenções, teve vida curtíssima. Sem maiores explicações, a instituição responsável pela produção, o Instituto Takano, se desligou do projeto e retirou o patrocínio. Segundo Daniel Dias da Silva, diretor-assistente da peça, em depoimento exclusivo, “a peça foi uma iniciativa de um Instituto Cultural, ligado a um importante parque gráfico, que, após o fim da temporada de dois meses, não se interessou mais em levar adiante o espetáculo. A ida para o Rio de Janeiro foi uma iniciativa do Faustini, do Guarnieri e do produtor Sandro Chaim. O Sandro havia sido contratado, na temporada paulistana para administrar a peça e tomou a frente da produção, levando-a para o Rio, bancando parte dos gastos. Se não fosse essa tríade e o empenho de toda equipe, a capital carioca não teria tido a chance de ver a peça”. O mega-espetáculo ficou em cartaz apenas dois meses em São Paulo e um mês no Rio de Janeiro. Foi a última peça escrita por Guarnieri e motivo de grande orgulho para ele. Mas também razão para uma pequena amargura que ele carregou em seus últimos anos, por aquilo que poderia ter sido e não foi. Por uma linda mensagem que não teve tempo de ser transmitida.
O elenco e toda a equipe, entretanto, tem as melhores recordações, como veremos em alguns destes depoimentos exclusivos:
Cláudia Tordatto - Eu tive a honra de estrear nos palcos profissionais participando da peça "A Luta Secreta de Maria da Encarnação", do saudoso e único Guarnieri. Posso dizer que foi muito especial, muito importante, primeiramente por estar em contato com a vida "real" teatral. Além disso, a oportunidade de trabalhar com pessoas tão interessantes, com idades, formações, histórias, ideologias diferentes. Toda essa mescla gerou a nossa “Maria da Encarnação”, um retrato do nosso povo. Sempre será inesquecível para mim este momento da minha carreira. Obrigada Guarnieri, esteja aonde estiver (com certeza em meu coração). Beijos grandes e carinhosos à família e ao elenco desse espetáculo.
Evill Rebouças - Trabalhei como ator no último texto escrito por Guarnieri, mas esse espetáculo foi um divisor de águas na minha vida enquanto dramaturgo. Lia o texto e duvidava da sua potência enquanto espetáculo, pois eu era absolutamente ignorante em relação ao épico. Era muito estranho acreditar que algo não linear e não causal, algo episódico, fragmentário e muito extenso poderia ser potente para o espectador. Entendia a palavra dramaturgia no singular e não no plural, isto é, ela enquanto literatura, sem considerar a sua transposição para a cena. Descobri, graças a esse processo — depois de mais de dez peças escritas por mim — que eu era um autor burguês e com horizontes que precisavam ser expandidos. Depois da experiência em "A Luta Secreta de Maria da Encarnação", minhas temáticas mudaram, meus discursos mudaram, graças a dramaturgia de Guarnieri e de Marcus Vinícius Faustini — diretor do espetáculo com quem sempre conversei sobre as minhas desconfianças épicas e que em sua rebeldia, me inquietava e me desafiava na prática. Obrigado Guarnieri, obrigado Faustini!!! Também não da pra esquecer que eu torturava a Mariana Guarnieri; eu, um soldadinho da ditadura e ela, uma militante, filha de Encarnação. Meu golpe era certeiro em sua barriga enquanto personagem, mas impregnado de ternura ao tocar aquele ventre porque, na vida real, mais um Guarnieri estava sendo gerado.
Cinthia Zaccariotto - Meu fazer teatral me remete ao Teatro de Arena, onde tive o prazer e a honra de ser dirigida por Afonso Gentil em “Artimanhas de Escapino” e “O Raposão e a Torta” e posteriormente por Augusto Boal no Núcleo II em “Arena Conta Tiradentes”. Os atores com quem contracenei, amigos especialíssimos com quem convivi e dividi anseios artísticos e humanos naquele período de efervescência cultural e política , entre 1966 e 1968, foram Carlos Augusto Strazzer, Antonio Fagundes, José de Anchieta , Amilton Monteiro (que me levou pro Arena), Seme Lutfi, Zanoni Ferrite, Luis Carlos Arutin, Claudia Mello, Murilo Alvarenga (maestro), Luis Serra, Otávio Augusto. Além disso, vi atuando quase que diariamente e tive muita proximidade com o elenco mais maduro, “os grandes” (para mim “enormes” à época e sempre) Gianfrancesco Guarnieri, Vanya Sant’anna, Dina Sfat, Paulo José, Silvio Zilber, Myriam Muniz, Renato Consorte, Chico de Assis. Todos eles fizeram a minha cabeça na arte e em grande parte na vida. Foi uma escola e tanto! Aquele pedacinho de mundo era uma felicidade só! Um universo de amor intenso pelo que fazíamos e vivíamos. Um privilégio pra uma garota como eu que lá fiquei dos 17 aos 20 anos. "Pertencimento" é a palavra correta. O Chico de Assis achou que além de atriz eu cantava bem me vendo em “Tiradentes”. Me apresentou pro Carlinhos Castilho, maestro, e lá fui eu pra TV Excelsior compor o quarteto “As Meninas”.
Afastada do teatro em 1969 e da música em 1970, por rumo diferente que minha vida tomou, 25 anos depois volto desejando reencontrar-me com o que aquele passado representou pra mim. Percorri um caminho de recomeço nada fácil. Tudo estava muito diferente, mas eu estava decidida e conseguindo espaço como atriz e cantora. Até que um dia me vi fazendo um teste concorridíssimo para “A Luta Secreta de Maria da Encarnação”. Texto do Guarnieri e dois de seus filhos no elenco, Flávio e Mariana, além da Claudia Mello, antiga companheira de palco. Que emoção! Que contentamento! Que medo de não ser aprovada! Felizmente deu certo. Eu iria cantar e atuar numa peça do Guarnieri novamente! Um prêmio a essa altura da vida! Um sentir tudo outra vez! Fiz novos e queridos “amigos de infância” e não larguei mais deles. Estamos por aí nos esbarrando sempre. Adorei pertencer ao espetáculo, ao processo.
Ewerton de Castro - Ainda hoje me lembro do impacto que foi assistir “Eles não usam Black-tie” em um circo de lona armado na zona do meretrício na cidade de São José do Rio Preto onde morava em meados dos anos 60. Era a revolução estética com a mensagem política. Uma obra prima insuperável. Depois em São Paulo pude acompanhar a carreira de ator e dramaturgo de Guarnieri. “Gimba”, “A Semente”, “O Filho do cão”, “Um grito parado no ar”, “Ponto de partida”... Todas comprovando o excelente autor e homem preocupado com as questões sociais. Em televisão atuei nos tele-teatros: “O Pivete” e “As pessoas da sala de jantar”. Quis o destino que eu também fosse indicado por ele para dublá-lo numa versão para a televisão de “Gaijin” onde ele fazia um italiano que a Globo queria falando português. Em teatro ansiava por trabalhar num texto seu e tive a sorte que isso acontecesse em seu último trabalho como dramaturgo: “A Luta Secreta de Maria da Encarnação”. Guarnieri foi, sem dúvida alguma, a mais importante personalidade da história do nosso teatro.
Vanessa Gerbelli - Participei da "Luta" logo após ter terminado uma temporada de "Eles Não Usam Black-Tie" em São Paulo. O Faustini, diretor de ambas, emendou um projeto no outro e me convidou a fazer o mesmo. Posso dizer que fiquei mais de um ano dentro do "ambiente" do Guarnieri, em vários sentidos porque constantemente íamos à casa dele, que estava escrevendo o texto aos poucos, enquanto ensaiávamos. A cada dia chegava um novo trecho ou uma nova música, que nós discutíamos em grupo e com o próprio Guarnieri. O processo foi muito interessante e democrático, sem falar que foi um privilégio conviver com ele durante aquele período. Um homem encantado com o teatro e com o povo. As músicas eram do Renato Teixeira, composições muito bonitas e boas de cantar. A tentativa do Faustini era fazer um musical bem brasileiro, sem os moldes da Broadway que estavam começando a ser usados aqui na época. Foi um pouco difícil definir esse estilo, afinal cantávamos com uma orquestra e éramos muito numerosos no palco, mas acho que nos resolvemos tecnicamente e o espetáculo ficou bem interessante. Os atores eram ótimos (a querida Suely Franco!... Delícia almoçar com ela todos os dias. Evill, Ewerton...) Os cenários eram do Serroni, coreografia do Borelli, ou seja, o time era muito bom, daqueles que engrandecem a nossa experiência e carreira.
Concluo com o testemunho do próprio Guarnieri, dado a Sérgio Roveri em 2004:
Faustini fez um belíssimo espetáculo, lindo, que infelizmente ficou só um mês em cartaz. Quer dizer, de que adianta você levantar uma produção maravilhosa para manter em cena por apenas um mês? Foram quase quatro meses de ensaio e apenas um para apresentar. E isso pagando de forma integral, pagando uma produção caríssima com a verba da Petrobrás. Mais de 1 milhão de reais. Eu achei que tudo aquilo era um absurdo.
Foi um espetáculo que não teve a mínima chance de amadurecer no palco. O Faustini ensaiou já sabendo disso, e conseguiu um resultado muito bom. Faltava só o público. Então o público veio e puxa, ficou realmente muito impressionado. Mas me irrita ver como as coisas são feitas no Brasil. Então você tem uma empresa como Petrobrás que te dá o patrocínio, e você usa este patrocínio - está certo que você deu emprego para trinta e tantas pessoas. Mas o espetáculo, depois, foi feito na base do convite. Era uma distribuição de convites absurda. Então eu comecei a achar que aquilo tudo, no fundo, não era para o público, era para os produtores, os formadores de opinião. Era apenas uma questão de prestígio, ou de contemplar interesses mútuos. Se uma peça de teatro é um espetáculo cênico, você tem de lutar para que ela permaneça em cartaz o maior tempo, lutando para que mais gente possa assistir. Os produtores não podiam ter ficado contentes com o resultado de Maria da Encarnação. E eles ficaram inteiramente satisfeitos. Eles cumpriram o que tinham de cumprir, e nada mais. Não houve empenho na manutenção do espetáculo. Então eu achei tudo um desperdício.
Depois conseguimos apenas 20 mil reais para levar a peça ao Rio de Janeiro, porque os atores aceitaram fazer o espetáculo dividindo a bilheteria. Eles agüentaram este esquema por 15 ou 20 dias apenas, depois não deu mais. A peça só foi para o Rio graças ao empenho dos atores e do Faustini. Na nossa realidade, daria para fazer aquele espetáculo gastando muito menos. O problema foi que, durante a produção, todos os pedidos foram atendidos. Os produtores queriam que nós pensássemos grande. Qual artista que, tendo essas condições, não vai querer realizar uma super-produção? O problema vem depois, quando não consegue mais se manter.
Sabe o que eu aprendi com tudo isso? Que se criou no Brasil a mentalidade do evento. Parece que os produtores pensam assim: eu vou fazer um evento, gaste o que gastar. Então eles fazem o evento e o evento funciona. Mas funciona para quem? Ora, somente para eles. Tudo passou a ser um jogo de prestígio em que a principal regra é satisfazer alguns interessados. Em vez de espetáculo, você passa a ter algumas pessoas fazendo média.
Justamente por pensar no público é que eu fiquei muito melindrado. As pessoas iriam gostar muito da peça se tivessem tido a chance de assistir. A peça foi vista por uma classe média alta e algumas pessoas mais interessadas, só isso. Em um mês uma peça não consegue se mostrar. Nem com ingressos a preços populares. Foi um desperdício, porque o verdadeiro objetivo, que é levar o teatro ao povo, não foi atingido.
Mas eu saí com um saldo positivo disso tudo: saber que tinha valido a pena, pela segunda vez na minha vida, apostar em diretores jovens.
Gianfrancesco Guarnieri, 2004
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Clique aqui para baixar o compacto de 55 minutos de A Luta Secreta de Maria da Encarnação. Não é o espetáculo completo, mas dá a perfeita noção da grandiosidade da realização, o apuro, o capricho e a competência de todos que estavam envolvidos. Aproveitem!
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Agradecimento à BERNARDO SCHMIDT - O patativa por conceder autorização para publicar sua materia neste site.
Link do blog O Patativa - Bernardo Shmidt
http://bernardoschmidt.blogspot.com/2010/10/guarnieri-e-luta-secreta-de-maria-da.html
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